Uma das mais antigas fotografias da Igreja do Torne com um grupo de alunos (1888-1889?)
O «Torne» era, há 150 anos, apenas o nome de um pequeno lugar, com dois ou três arruamentos, pouco mais de trinta casas e um pouco acima da centena de moradores. O próprio nome era novo e inseguro; poucas décadas antes chamava-se «tornete» ou «torna-meeiros» porque sendo então (como agora) divisória entre as freguesias de Santa Marinha e de Mafamude, os fregueses desobrigavam-se ora numa, ora noutra.
O sítio era algo afastado, tanto do bulício das ruas ribeirinhas, onde acostavam os barcos e o vinho do Douro, com outras mercadorias que chegavam aos armazéns; como da igreja matriz e dos aglomerados de São Cristóvão e Paço de Rei. O esparso casario concentrava-se entre grandes quintas, como a da Belavista, e campos agrícolas, e o subsolo haveria de ser rasgado na década de 1870 por um túnel ferroviário… que nunca chegou a ser utilizado, pois a construção da ponte D. Maria levaria o comboio das Devesas ao Porto por outro percurso.
Na primavera de 1868, um jovem de vinte e três anos afadigava-se quase diariamente a inspecionar as obras de construção de um edifício situado num terreno elevado, sobranceiro ao caminho que dos altos do Padrão e de Santo Ovídeo baixava a General Torres e daí à ponte pênsil e à cidade do Porto. Chamava-se Diogo, ou melhor, tinha sido batizado como James, mas nascido no Porto e tendo vivido no país a maior parte da sua vida, compaginava a nacionalidade portuguesa com a inglesa dos seus pais e irmãos, e por isso era conhecido como Diogo ou James conforme se relacionasse com nacionais ou estrangeiros.
Diogo Cassels dirigia a indústria de estamparia da família, estabelecida em Paço de Rei, e parecia destinado à carreira dos negócios, talvez gozando, como tantas das famílias britânicas estabelecidas no Porto, de uma pacata vida burguesa, distribuída entre os jantares ou bailes da feitoria, as partidas de cricket ou ténis no clube e, naturalmente, o serviço religioso dominical na capela consular de Saint James, ao Palácio de Cristal. Mas não foi esse o caminho que Deus preparou para o jovem Diogo, nem certamente aquele que o seduzia.
Desde há meses, Diogo reunia em sua casa aos domingos à tarde pequenos grupos de oração, com «aula bíblica», usando a Escritura em vernáculo, e recitação da ladainha do Livro de Oração Comum anglicano. A assistência foi crescendo e ultrapassava já a centena de ouvintes, tendo de reduzir-se o número e tornar os encontros semiclandestinos, pois se a Carta Constitucional garantia alguma liberdade de cultos, com restrições, o Código Penal não admitia o proselitismo ou a propaganda que não fosse católica-romana. À curiosidade dos vizinhos, sucediam-se as invetivas e ameaças de excomunhão, proferidas dos púlpitos paroquiais de Mafamude e Oliveira, e a desconfiança das autoridades.
Entretanto, Cassels convida um presbítero espanhol que dirigia uma igreja de rito episcopal em Lisboa, D. Ángel Herreros de Mora, a visitá-lo numa das reuniões e D. Ángel acede e celebra a eucaristia, nas duas espécies e segundo a liturgia da igreja inglesa. A situação torna-se explosiva e ameaçadora para Diogo… mas já então uma visão lhe inflamara a fé e o animara a algo inaudito: o jovem Cassels comprara um terreno, angariara fundos e… estava a edificar um templo cristão. Ali mesmo, no meio de Vila Nova, como se simbolicamente o caráter liminar do velho tornete fosse também o risco de quem ousa uma nova forma de cultuar e ser igreja.
Mas o cerco apertava… em junho Diogo é preso, acusado de proselitismo e desrespeito à religião do Estado. Nada que lhe tirasse o ânimo e o brilho que lhe incendiara a alma. A obra da capela avançou decididamente durante esse verão e o edifício concluiu-se no outono, um vasto salão de planta retangular mas sem forma exterior de templo e cercado por um muro alto que impedia que se visse do exterior. No domingo 18 de outubro, a capela foi solenemente inaugurada com um culto dirigido pelo reverendo H. H. Richmond, pastor metodista em Gibraltar. Nas semanas seguintes os serviços continuaram em Inglês, pois o tempo aconselhava prudência, até porque em novembro, mês em que completou 24 anos de idade, Diogo Cassels foi julgado e condenado a seis anos de deportação. O processo arrastar-se-ia até 1869, com a absolvição de Cassels no Tribunal da Relação do Porto.
A história continuou… até hoje!
Para saber mais:
- Aspey, Albert (1971) –Por este caminho. Origem e progresso do Metodismo em Portugal no Século XIX. Umas páginas da história da procura da liberdade religiosa.Porto: Igreja Evang. Metodista em Portugal
- [Cassels, Diogo] (1908) –A Reforma em Portugal. A historia resumida, já publicada na «Egreja Lusitana» nos anos de 1897 e 1898, revista, augmentada… Porto: Typ. a vapor de José da Silva Mendonça
- Guimarães, Gonçalves (1995) – O lugar do Torne. Estudo de microtoponímia gaiense. In Silva, A. M.; Dias, Jaime R. (coord.) – Atas do Colóquio Vila Nova de Gaia de há 100 anos... V. N. Gaia: Junta Paroquial S. João Evangelista, p. 21-33
- Silva, António Manuel S. P. (1995) – As duas igrejas do Torne (Sta. Marinha, Vila Nova de Gaia): nota evocativa a propósito de um centenário. Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia. 40. V. N. Gaia, p. 55-6